Entrevista a André Lage

A entrevista de hoje é a André Lage. O André está em Inglaterra há praticamente dez anos. O blog dele também me foi bastante útil. Aproveitem, porque é uma leitura bastante interessante e cheia de informação valiosa.

* Quando te mudaste para o UK?
Mudei me com a Vanessa (minha namorada e também farmacêutica) em Setembro de 2009. Para aquilo que, inicialmente, seria uma aventura de dois anos por terras inglesas.

* O que te fez escolher a cidade onde estás?
Quando em Maio de 2009 comecei a pensar em vir para Inglaterra não conhecia muito do país. Falei com uma empresa de recursos humanos europeia, que estava a recrutar farmacêuticos para a Lloydspharmacy e, após os primeiros contactos, eles enviaram me uma lista de doze possíveis locais em que a Lloyds pretendia empregar farmacêuticos europeus.
Disseram me para escolher o que quisesse, mas pediram-me para me manter fiel a essa escolha até ao fim.
Dos doze locais eu exclui de imediato a Ilha de Jersey e a Ilha de Man porque achei que iria ficar bastante isolado. Depois tracei uma linha imaginária mais ou menos a meio do país e eliminei tudo o que ficava a norte porque achava que o clima a sul seria melhor. Eliminei tudo o que fosse mais próximo de Londres porque achava que o custo de vida seria superior nesses locais e achei que isso podia ser importante pelo menos no início.
Dos três-quatro locais que sobraram, confesso que escolhi completamente ao acaso. E por aqui continuo quase dez anos depois...
* Alguma vez ponderaste outro país que não um pertencente ao UK?
Quando eu comecei a pensar em emigrar, pesquisei um bocado e rapidamente vi que o UK tinha muita coisa a meu favor. Havia por volta de 2008-2011 uma grande procura de farmacêuticos europeus e isso ia-me permitir deixar Portugal já empregado. Já com um contrato assinado. Não era sair por sair. Depois eu dominava a língua. Não era assim tão longe de Portugal (é Europa). Tudo isto permitia que o risco de uma aventura destas fosse algo controlado. Se as coisas corressem mal, eu não estava do outro lado do mundo. Estava relativamente perto de casa.
A juntar a isto, fui lendo alguns blogs de outros farmacêuticos portugueses no UK e a descrição que faziam era a de uma profissão altamente respeitada, diferenciada e bem remunerada.
Face a tudo isto nunca cheguei a ponderar outra hipótese que não o UK. Até porque assim que comecei a procurar uma oportunidade, ela surgiu.
Talvez se não tivesse conseguido ser recrutado para o UK, tivesse tentado outro país. Mas esse necessidade nunca surgiu.
* Quais foram as principais razões pelas quais quiseste trabalhar no UK?
Eu sou de Coimbra. Nasci em Coimbra, estudei em Coimbra, trabalhei sempre num raio de 70-80Kms de Coimbra. Esta foi uma das principais razões por que eu quis emigrar. Sentia que ou o fazia naquela idade dos vinte “e pickles” ou depois a coisa tornar-se-ia mais difícil por questões familiares.
Por outro lado, eu era farmacêutico comunitário em Portugal e, ao longo do meu dia, reparei que olhava demasiadas vezes para o relógio. Eu sentia que podia fazer mais do que o que me era pedido em Portugal. Tinha vontade e competência para lidar com mais.
Portanto, o que eu queria mesmo era fazer algo que fugisse à rotina. Algo diferente.
Juntei a este desejo de fazer algo diferente ao facto de, como disse na pergunta anterior, ter a imagem de uma profissão diferenciada, exigente e valorizada por terras inglesas. Portanto, quando comecei a pesquisar por uma oportunidade, as primeiras palavras que coloquei no Google foram mesmo “UK pharmacist job”. A partir daí foi uma sequência de acontecimentos que não mais fiz por parar.
* Em que área trabalhas atualmente?
Desde que cheguei até hoje trabalhei sempre em farmácia comunitária.
Já em Portugal foi esse o meu historial no mundo da Farmácia (com uma breve passagem, durante o estágio da faculdade, pelo Hospital Pediátrico de Coimbra).
Aqui, levo quase dez anos em farmácia comunitária. Comecei como Conversion Pharmacist, na Lloydspharmacy, quer era um período de cerca de dois meses em que me adaptava ao sistema farmacêutico britânico.
Depois fui Relief Pharmacist também na Lloyds que é basicamente o ser “carne para canhão” cá do burgo. Trabalhava para a Lloyds, não tinha uma farmácia fixa e tinha uma rota que mudava todos os meses e em que me mandavam para as farmácias mais difíceis.
Passado uns meses, já um pouco mais conhecedor de como funcionava aqui o mundo das farmácias comunitárias, fui ter com o meu chefe e perguntei lhe onde é que ele me via daqui a um ano (porque se se era para aquilo, eu o fazia por conta própria).
Tornei me então Pharmacy Manager de uma farmácia por onde fiquei uns meses. Depois Em Agosto de 2010 sugeri o meu nome para Pharmacy Manager de uma farmácia bem maior e que se debatia com problemas para encontrar alguém que lá quisesse trabalhar regularmente. Eu cheguei em Setembro de 2009 e o primeiro ano foi de várias mudanças e subidas na hierarquia.
Mantive me nessa farmácia até Maio de 2012, altura em que (já depois de ter rejeitado outras mudanças de empresa) acedi a mudar para a Tesco Pharmacy. Trabalho também como Pharmacy Manager mas o que me é pedido na Tesco é bem mais complexo do que me era pedido na Lloyds.
Na Lloyds eu era Pharmacy Manager no título mas basicamente, dado o enorme volume de trabalho, 90% do que fazia eram funções de farmacêutico. No Tesco o meu tempo é mais dividido entre funções de farmacêutico e funções de gestor da farmácia.
Dentro do Tesco estive cinco anos na mesma farmácia, acumulando com alguns pequenos projectos de ajuda a outras farmácias e/ou à empresa. E há um ano vi uma nova oportunidade dentro do Tesco e mudei para outra farmácia onde tenho um horário mais social e melhor para a minha vida pessoal e familiar.
* Quais são as maiores diferenças desde que chegaste ao UK?
Ora bem, se estamos a falar nas diferenças culturais entre o UK e Portugal, elas são muitas.
Aquela que me vem à cabeça em primeiro lugar é mesmo a diferença na dieta. É incrível o quão mal os ingleses comem quando comparados com a dieta normal dos povos mediterrâneos. Cozinham muito pouco, usam muita comida processada, almoçam muitas vezes sandes, pelo que vou vendo comem pouca fruta e poucos vegetais, em dez anos ainda não encontrei uma pessoa que tenha o hábito de cozinhar sopa, abusam muito nos snack... comparar a dieta inglesa com a portuguesa era tema que dava para um livro.
Depois são também muito diferentes de nós nos horários. Os dias de trabalho aqui começam mais cedo que em Portugal e a vida social acaba muito mais cedo que em Portugal. A hora normal de jantar para os ingleses são as 18:00-18:30 e todo o comércio (excepto supermercados grandes) fecha no máximo a essa hora. Para quem vem de um país como Portugal, onde há sempre um shopping aberto até as 22:30, é uma diferença assinalável.
Parece me que o povo inglês é mais orgulhoso do que é seu e mais defensor do que é seu, face a nós. Portugal tem coisas e pessoas fantásticas mas os portugueses valorizam nas pouco. O nosso clima, o nosso mar, as nossas praias, a nossa comida, os nossos emigrantes, a nossa História, as nossas empresas que são líderes em vários sectores de actividade... faz nos falta por vezes defendermos tudo isto um pouco mais. Os ingleses defendem sempre o que é deles e tem até relutância em aceitar algo que seja feito de forma diferente.
Há outras culturais. Bastantes até. Mas estas são as primeiras em que penso.
Se a pergunta era mais sobre diferenças no mundo da farmácia isso é tema para outro livro... são tantas tantas. Talvez as próximas perguntas sejam suficientes para falar um pouco delas.

* Profissionalmente falando, qual é o melhor aspeto da profissão; e qual é o pior?
A profissão de farmacêutico de comunidade no UK é muito boa.
Para começar, e este é inevitavelmente um dos aspectos positivos que destaco, a profissão é altamente respeitada pela população. Devido ao facto de haver efectivamente uma interação salutar entre diferentes agentes de saúde pública (médicos, farmacêuticos, enfermeiros, prestadores de cuidados) e devido ao facto de recair sobre o farmacêutico mais responsabilidade no UK (do que em Portugal por exemplo) a profissão é vista pelo público como diferenciada e de utilidade clínica efectiva. E não posso negar que gosto disso.
Depois gosto também do facto de ter um volume de trabalho enorme a depender de mim. Eu tenho tanta coisa para fazer, tanta receita para checar, tanto aspecto do negócio para gerir, tanta interacção com a minha equipa para fazer, tanto projecto do meu empregador para colocar em marcha, tanta interacção com o público para fazer, tanto serviço clínico para executar,... que os meus dias voam.
Depois gosto do facto de ter sob minha responsabilidade diversas vertentes de um negócio para gerir e para fazer crescer, com revisões de performance periódicas, onde sou justamente avaliado pelo meu superior hierárquico, onde defendo o que faço e onde tenho autonomia para tomar decisões.
E por fim, agrada me o facto de a profissão no UK ser bem remunerada. Recebo dinheiro que possivelmente não receberia em Portugal nem que trabalhasse 24 por dia. Mas que para o que me é exigido, para a responsabilidade diária que assumo perante a lei, para a responsabilidade clínica que tenho a cada minuto mas decisões que tomo e para o quanto faço crescer as farmácias onde trabalho (e por conseguinte para o quanto dou a ganhar aos meus empregadores) é um valor justo.
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Os aspectos negativos que destaco na profissão prendem se com o facto de, em geral, ser rara a farmácia do UK que tem ferramentas suficientes (horas de staff, consumiveis, etc) suficientes para realizar em segurança todo o volume de trabalho que tem para realizar, seguindo em todos os momentos os procedimentos operacionais estipulados. Talvez por sempre ter trabalhado para grandes companhias, rara será a farmácia em que alguma vez trabalhei em que sentisse que tinha ao meu dispor todas as ferramentas necessárias para fazer o meu trabalho em segurança e para a fazer crescer ainda mais. Conhecedor desta realidade, infelizmente por vezes, a solução passa por abrandar um pouco o ritmo de crescimento (o que para o meu lado de gestor de um negócio não faz sentido nenhum. Mas o meu lado de farmacêutico que assume a responsabilidade por tudo o que se passa, agradece).
Destaco também negativamente o facto de gerir uma equipa pouco qualificada que me obriga a estar constantemente alerta para não fazer erros que coloquem em perigo a segurança dos meus utentes. E no geral, quase todas as equipas de farmácias de grandes companhias, no UK, baseiam se na existência de um farmacêutico e de várias outras pessoas pouco qualificadas para a exigência do trabalho que estão a fazer e que, não raras vezes, tendem a desistir deste emprego (o que obriga o farmacêutico a começar todo o processo de treino do zero, com alguém novo).
Finalmente, e a título pessoal, devo dizer que não concordo com a dispensa em unidose que se faz não farmácias do UK. Compreendo as vantagens da unidose por motivos orçamentais e de modo a reduzir o desperdício (que são temos em que penso recorrentemente) mas não concordo que se possam abrir embalagens e cortar blisters para fornecer ao público. Muito menos sem que cada unidade tenha bem explícito o nome do medicamento, dosagem, forma farmacêutica, prazo de validade e número de lote.
Se se garantir que cada unidade (comprimido/cápsula/etc) tem no seu blister todas esta informação (como algumas raras excepções tem) eu aceitaria melhor. Agora abrir caixas e andar a contar comprimidos para depois as voltar a fechar... penso que coloca em risco a segurança dos pacientes e faz elimina muitas das medidas de segurança que o indústria farmacêutica garante no processo de fabrico e controlo de qualidade.

* Na tua opinião, o que teria de mudar na profissão em Portugal para te fazer voltar?
Neste momento vejo com grande dificuldade um regresso a Portugal a curto/médio prazo. Tenho a vida completamente estabelecida no UK, tenho a minha carreira onde a quero (com um equilíbrio perfeito entre horas de trabalho, gosto pelo que faço, ordenado e motivação para continuar), tenho a família adaptada e estou a um voo curto de casa. Estou também numa idade em que a prioridade é a família e portanto não me apetece começar uma grande empreitada como mudar de país ou de carreira.
Posto isto, não creio que houvesse mudanças suficientes na Farmácia em Portugal para me fazer mudar de ideias.
A longo prazo, sim, o regresso é certo. Tenho um plano bem estabelecido na cabeça: quero reformar-me cedo (não pretendo trabalhar para lá dos 55 anos) e tomo muitas decisões a pensar nesse plano. Quando esse dia chegar, também não tenho dúvidas de que vou regressar a Portugal. Desde o primeiro dia que aqui cheguei (e provavelmente até ao último que aqui estiver), considero toda esta experiência apenas uma passagem. A minha casa sempre foi e será Portugal.
Mas no dia que regressar, não penso regressar para trabalhar em
Farmácia. Ou gozo a reforma ou me dedico de forma rentável a alguma outra paixão.
* Quais são os teus planos profissionais para o futuro?
Acabei por responder a isto na pergunta anterior.
Neste momento estou muito feliz com o meu emprego. Quando há um ano e pouco agarrei na farmácia onde estou agora, que estava desorganizada, percebi imediatamente o que tinha em mãos. Bastou me ir lá dois dias para chegar a casa e pedir ao meu chefe para ser eu a gerir aquilo.
Eu estava numa farmácia organizada de raiz por mim mas com grande volume de trabalho e cujas horas (6:30 - 22:30) eram muito más. Eram más para a saúde, más para a vida familiar que estava a iniciar e más para um salutar equilíbrio trabalho/vida. Ao ver a farmácia onde estou agora eu sabia que ia ter 2-3 meses de trabalho intenso para a moldar ao que eu quero e uns valentes meses de treino da equipa mas sabia que quando esse período passasse eu teria em mãos uma farmácia mais pequena, com horário mais social (08:00 - 20:00) e que me permitiria chegar todos os dias a casa e ainda passar tempo com a minha filha, assim como dormir mais e viver melhor.
Portanto, neste momento estou onde quero. E várias vezes ao longo dos últimos meses tenho pensado no quão acertada foi a minha decisão e no quanto melhorei a minha vida.
Portanto, a nível profissional, os meus planos para o futuro passam por continuar onde estou, pelo menos a médio. Continuar a fazer ali um bom trabalho todos os dias e a garantir um funcionamento seguro, legal e lucrativo daquela farmácia. E enquanto continuar a acordar feliz com o que estou a fazer e com o reconhecimento que tenho daqueles para quem trabalho, não me vejo a mudar.
A longo prazo, não me vejo a subir na hierarquia de uma grande empresa. Já percebi que onde eu faço um bom trabalho e onde eu gosto de estar, é na gestão de uma farmácia. Subir, e gerir várias farmácias, não é algo que me fascine porque iria ser um gestor à distância, iria estar a tentar influenciar pessoas que não vejo regularmente e a minha performance iria ser avaliada pela performance de pessoas que estaria longe de influenciar diariamente.
A longo prazo, penso que no dia em que deixar de querer ser gestor de uma farmácia, tornar-me-ei farmacêutico freelancer. Vejo-me a fazer isso talvez daqui a uns 10 anos, numa altura em que reduzir ainda mais o número de horas de trabalho. Mas só o ponderarei daqui a alguns anos e consoante evolua o mercado de emprego de farmacêuticos no UK.


Podem visitar o blog do André em Gloucester a dois.

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